sábado, 24 de novembro de 2007

Conto de Natal de Sylvie Garroche

"A Marcha do Tempo"

Era uma vez um velhinho que caminhava com um passo lento num caminho pedregoso. Tinha o dorso arqueado e as suas roupas pendiam um pouco miseravelmente ao longo do seu corpo. Seguia-o um cão arrastando a pata e com a língua de fora. Não se sabia qual dos dois estava pior. E eis que o cão caiu morto de cansaço. O homem limitou-se a olhá-lo com um ar infinitamente triste e continuou o seu caminho. Sozinho novamente, o velho parecia transportar no seu olhar toda a miséria do mundo.

Um pouco mais à frente, uma criança correu ao seu encontro e com a confiança e espontaneidade dos pequeninos disse:

- Posso ir contigo?

- Se quiseres- respondeu o homem.

O pequeno saltitava ao seu lado. Depois, perguntou-lhe:

- Porque é que o sol se deita todas as noites?

- É necessário que o sol se deite todas as noites para que se possa levantar-se -respondeu o velhinho com o ar mais sério do mundo.

- Isso é verdade, eu nunca tinha pensado nisso - retorquiu o menino.

O velhinho sorriu e de repente a criança foi-se embora, tão naturalmente como tinha vindo.

- Tenho que voltar para casa. Adeus velhinho.

- Adeus pequenote.

Caminhava desde que o mundo é mundo

Mais longe ainda, um homem aproximou-se do velhinho. Tinha uns

quarenta anos mais ou menos, mas não tinha bom aspecto. Este homem tinha preparado a sua trouxa e preparava-se para partir para longe. Vendo o velhinho na sua estrada, disse para consigo:

- Muito bem, eis que encontrei um companheiro!

E pediu-lhe para acompanhá-lo. O velhinho aceitou. Ele nunca recusava uma companhia, qualquer que ela fosse. Durante longas horas, ele escutou atentamente o homem que contava as suas infelicidades e, pouco a pouco, este parecia sentir-se aliviado.

Chegada a noite, passaram junto de uma cabana. O homem com a trouxa começava a sentir-se fatigado e propôs:

- Está-se a fazer noite. Pernoitemos aqui.

Mas o velhinho respondeu que devia continuar o seu caminho. O velhinho, sem abrandar a sua caminhada, acenou-lhe amigavelmente. Depois, afastou-se na escuridão e o barulho dos seus passos perdeu-se na espessura da noite.

E os dias continuaram o seu curso; o velhinho caminhava sempre. Apesar do seu ar vagabundo, inspirava respeito àqueles que encontrava. Frequentemente, quando passava perto de um casa por volta do meio-dia, as mulheres interpelavam-no:

- Ei, velhinho, tens um ar fatigado. Vem partilhar o pão connosco e repousar um pouco!

Ele respondia:

- Obrigado, mulher generosa, mas não é possível. Eu sou o tempo e o tempo nunca pára.

Então uma criança correu atrás dele para lhe dar ao menos um pedaço de pão e deixá-lo prosseguir a sua viagem sem fim. No entanto, o velhinho teria gostado de parar ao menos uma vez, poder repousar as suas pernas cansadas, nem que fosse por alguns minutos e contemplar, imóvel, um rosto virado para ele. Mas o tempo tem outro destino: caminhava desde que o mundo é mundo. Caminhava de dia, caminhava de noite, sob o sol e a chuva. Já tinha percorrido todos os caminhos da terra e recomeçava, eternamente.

Uma noite em que caminhava sem parar, pareceu-lhe que o céu estava mais claro do que de costume e que o ar tinha um sabor diferente. Endireitou as costas para respirar a plenos pulmões e sentiu-se alegre sem saber porquê. Três pássaros esvoaçaram à sua volta chilreando ao mesmo tempo, como para lhe anunciar alguma coisa. Ao longo do caminho, viu que as flores se tinham esquecido de fechar a corola com a noite. Elas abriam as pétalas e ofereciam o coração à carícia da lua. Como era bom caminhar naquela noite!

Depois, levantando a cabeça, o velhinho notou no céu uma estrela que não conhecia. Desde que caminhava, tinha já contado e recontado todas as estrelas: aquela, tinha a certeza de nunca a ter visto. E como era bonita, aquela nova estrela, que brilhava com mil luzes sem encandear os olhos! O velhinho fixou nela o seu olhar. A estrela avançava suavemente e seguiu-a sem quase se dar conta disso.

Teve a impressão de também sentir a respiração da noite, uma brisa suave que invadia o silêncio. Era mesmo uma música, que tinha começado como um sussurro e que se aumentava agora, envolvendo a terra com um manto de cânticos e notas.

Num cruzamento de caminhos, três homens que caminhavam com um passo decidido juntaram-se a ele. Um pouco mais à frente havia um outro grupo. O velhinho distinguiu entre eles vozes de mulheres e de crianças.

E ouviu descer um rebanho de uma colina, fazendo tilintar as campainhas e ressoar os chamamentos dos pastores. No entanto, àquela hora deveria dormir-se. Que faziam eles, naquela noite, caminhando todos na mesma direcção?

- Onde ides? - perguntou o velhinho.

- Nasceu o Salvador. Vamos adorá-lo - responderam-lhe de todos os lados.

Era então isso! Chegavam agora pessoas de todos os lados. O velho juntou-se à multidão dos primeiros peregrinos que tinham chegado das colinas e a música do céu ritmou o barulho dos seus passos.

De seguida, na parte debaixo de uma pequena colina, descobriram uma pobre gruta. A estrela tinha parado por cima dela e inundava-a com uma luz suave. Um a um os pastores correram para a porta. O tempo compreendeu que era para chegar ali que caminhava há séculos. Como os pastores que o rodeavam, também ele, pela primeira vez na sua longa, longa vida, parou.

Não se passou nada de extraordinário. O Menino estava lá, entre José e Maria, e os seus grandes olhos abertos acolhiam cada um dos que entravam com uma infinita doçura. Todos se ajoelharam. Cada um apresentou-se, na sua vez. Muitos tinham trazido presentes: pequenos objectos cheios de amor que tinham escolhido com toda a ternura do seu coração.

Quando chegou a vez do velhinho se apresentar, mostrou as suas mãos vazias.

- Não tenho nada para oferecer, disse. Eu sou o Tempo, mas este Tempo eu dou-to.

O Tempo prostrou-se por terra. Maria veio pousar a mão no seu ombro.

- Também tu, caro velhinho, vais receber um presente - disse-lhe ela. Doravante, terás o poder de parar a tua marcha sempre que isso for necessário.

- Como é que eu saberei que esse momento de parar é chegado? Perguntou-lhe o velhinho.

- O teu coração to dirá.

E foi tudo. Depois dele, um pastor ofereceu-lhe um cordeiro recém-nascido e uma menina cantou a mais bela canção que conhecia. Pela pequena porta estavam sempre a entrar novos visitantes. Não se pode dizer quanto tempo tudo isto durou. Parecia que o tempo já não existia. E é verdade que tinha parado e que olhava maravilhado a festa que decorria à sua volta.

Foi o último a partir. Mas quando se levantou, já não era um velhinho como até ali: retomara o aspecto de um jovem, na força da idade. Ao deixar a gruta e ao retomar o seu caminho, fechou os olhos por alguns instantes para contemplar dentro de si este momento tão belo que acabava de viver. Depois, abriu-os e a terra parecia-lhe diferente da que ele conhecia. Ou melhor, seria ele que tinha mudado?

Mais tarde, já em pleno dia, caminhando com um passo suave sob o sol, encontrou uma velhinha carregando lenha. O molho tinha um aspecto pesado para ela que caminhava com dificuldade. A carga era da sua altura e, de repente, toda a lenha caiu e se espalhou pelo chão. Imediatamente uma vozinha infiltrou-se no coração do Tempo:

“Pára” - sussurrava-lhe a voz, e o Tempo parou.

- O molho é grande e pesado para uma mulher tão frágil como a senhora - disse o Tempo. Deixe-me ajudá-la!

À vista do olhar de agradecimento da mulher, ele apanhou os paus de lenha e carregou-os aos seus ombros.

- Onde vamos agora? - Perguntou o tempo num tom alegre. E acompanhou-a até à sua casa.

Para lhe agradecer, ela quis retê-lo e oferecer-lhe alguma coisa. Mas ele recusou a oferta.

- Desta vez eu devo partir - disse o Tempo, e fez-lhe um grande sorriso que lhe aqueceu o coração para todo o dia.

Depois, ele continuou a sua marcha muito feliz. Sentia-se mais leve que o ar e mais luminoso que a luz.

E é desde esse dia que, como certamente já adivinharam,

o Tempo pára quando se ama.

(retirado do Blog: http://estoriasdelua.blogs.sapo.pt/arquivo/2004_05.html)

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